sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sobre Cabinda e uma guerra esquecida



Ok, parece que não tem sentido escrever qualquer coisa que não seja sobre o trágico terremoto no Haiti, e eu reluto em colocar este post, que vinha preparando quando aconteceu o inominável acidente haitiano. Mas em respeito à luta e dignidade do povo Haitiano, que tenta se reorganizar (confira aqui), dou continuidade à vida deste blog com a pequena pesquisa sobre Cabinda, palco do atentado à seleção do Togo no dia 08 de janeiro.
O território de Cabinda é separado de Angola. A história dessa separação física e institucional reverbera até hoje, como vimos no atentado do dia 08 de janeiro.  Ele foi ligado a Angola em 1885, pelo tratado de Simulambuco, feito com as autoridades cabindesas, que reconhecia um status distinto de “enclave” para Cabinda. Logo a seguir, no mesmo ano, a conferência de Berlin dividiu o Congo entre três países (Portugal, Bélgica e França), e criou uma saída marítima ao congo Belga, dividindo o território português (em cerca de 60 km). Cabinda foi administrado separadamente por Portugal até 1956, quando passou a ser governado pelo Governador Geral (português) de Angola.
Segundo Comerford, “A génesis do problema de Cabinda advém do longínquo ano de 1885 (aquando da Conferência de Berlim), quando a África foi repartida a régua entre as potências coloniais. Para garantir o acesso ao oceano Atlântico, a conferência atribui ao antigo Congo Belga uma faixa de terra ao longo do rio Congo, separando fisicamente Cabinda de Angola. Embora Portugal contestasse a divisão, foi forçado a aceitá-la quando o rio Congo ficou posteriormente internacionalizado”. (“The peaceful face of Angola : biography of a peace process, 1991 to 2002 – Luanda : M. Comerford, 2005. – 297 p.)
A guerra civil angolana, que seguiu o fim da guerra colonial, acabou em abril de 2002, depois de 27 anos de conflito entre a UNITA e o governo (MPLA) . Porém, a guerra não acabou por completo, continuou em outras configurações no enclave de Cabinda. As forças angolanas estão se dedicando a acabar com a resistência cabindesa desde então, com o auxílio de ex-soldados da UNITA incorporados às FAA (Forças Armadas Angolanas). O conflito contra os insurgentes de Cabinda também trouxe os mesmos problemas relatados durante a guerra civil: execuções sumárias, estupros, abuso indiscriminado de civis, tortura, destruição e saques às propriedades. O ano de 2002 foi marcado por uma grande ofensiva das FAA contra as forças insurgentes de Cabinda, destruindo grande parte da estrutura revolucionária e gerando graves acusações de violações aos direitos humanos. Houve, inclusive, acusações de repovoamento com angolanos do sul em algumas localidades de Cabinda.
mapa pós 1885
O conflito é de teor nacionalista: o governo angolano reconhece Cabinda como parte integral de seu território e os separatistas aludem a uma identidade distinta, tradições distintas e uma vontade “natural” de independência. Uma solução ao problema não parece ser exclusivamente militar, mas negociada com algum nível de autonomia. O problema é encontrar algum interlocutor que fale em nome de Cabinda (veremos que há dissensões entre os separatistas, que a “sociedade civil” não tem representantes constituídos etc.).
O Movimento pela libertação do Enclave de Cabinda (MLEC) foi criado no começo da década de 1960, liderada por Luis Ranque Franque e se tornou rapidamente o grupo mais importante da resistência (apoiados pelo governo do Congo Brazzaville). Em 1963, o MLEC e outros grupos se fundiram na FLEC (Frente de Libertação do Enclave de Cabinda). Em 1977, a FLEC se dividiu em FLEC e CMLC (Comando Militar de Libertação de Cabinda). Nos anos oitenta a FLEC dividiu-se novamente em FLEC-FLAC (Força de Libertação Armada de Cabinda) e FLEC-R (renovada). Foi a FLEC-FLAC, comandada atualmente por João Baptista N’Guimbe, que realizou o atentado contra a seleção do Togo, no início da Copa Africana de Futebol, em Cabinda. A FLEC-R depois se dividiu novamente em FLEC-R e FLEC Plattaform.
Com essa tendência à fragmentação, parece impossível tanto a conquista da independência como a negociação de alguma autonomia. Atualmente a FLEC-R tende a aceitar uma negociação política, enquanto a FLEC-FLAC mantém-se fiel à luta armada. Além desse problema central, os separatistas vivem um problema estrutural: seus governos no exílio não foram reconhecidos pelos países africanos (com poucas exceções). Isso porque o separatismo cabindense levanta fantasmas de outros separatismos em África. E, além disso, as exceções de reconhecimento são mais um problema que uma ajuda: o apoio do Congo-kinshasa (ex-Zaire) e Congo-Brazzaville  (vizinhos de Cabinda) é visto como um interesse expansionista por Luanda, levantando a temores da anexação de Cabinda por um desses países.
Mapa de Cabinda pelas FLEC
Em agosto de 2006, formou-se o Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD), reunindo algumas facções da FLEC numa negociação com o Governo Angolano. Assinou-se o Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação em Cabinda. As negociações levariam ao reconhecimento de um “estatuto especial” para Cabinda e incorporação dos combatentes às FAA. Nesse processo muitos dos ex-guerrilheiros passaram ao governo de Cabinda, sob a égide do acordo de 2006. A FLEC-FLAC, entretanto, continuou sua atuação, mas já bastante enfraquecida pela deserção e pelo acordo de 2006. Na verdade, a escolha de Cabinda como uma das cidades que acolheriam a Copa Africana das Nações era um sinal da confiança do governo angolano no seu controle sobre o território de Cabinda.
A ação de repressão não se encerrou em 2006 e muitos relatos de prisões arbitrárias, torturas e violações de direitos civis tem sido feitas. Um relatório da Human Rights Watch indica que “membros dos partidos políticos e da sociedade civil disseram à Human Rights Watch que o acordo de paz de 2006 tem tido pouca credibilidade, contudo, porque o governo não fez concessões significativas, e uma parte influente da sociedade civil foi excluída das conversações. A insurreição armada continua.”
Mas qual é a importância de Cabinda para Angola e África, você deve estar se perguntando? Bom, Cabinda sozinha é responsável por mais de 60% da produção de petróleo angolana, segundo maior produtor de petróleo da África (atrás da Nigéria). Apenas 10% dos impostos gerados pelo petróleo de Cabinda ficam na Região (houve um acordo em 1995 para garantir esse repasse). Esse petróleo tem sido explorado principalmente pela Chevron-Texaco e ELF.
A exploração é feita, porém, à revelia de uma integração com Cabinda: há uma cidade separada, fortificada e ainda em 2003 cercada por minas terrestres. O transporte dos funcionários estrangeiros era feito por helicópteros. Em termos de trabalho, um emprego nas petrolíferas de Cabinda é bem perigoso, pois os seqüestros de estrangeiros são as principais ações dos guerrilheiros (até o atentado recente).
Em 2008 houve eleições nacionais em Angola, inclusive em Cabinda. Foi o único lugar onde a UNITA (agora como partido político de oposição) obteve maioria, com a promessa de considerar uma autonomia de fato ao enclave, numa revisão constitucional. Obviamente que a eleição da UNITA significa uma grande insatisfação popular com o estado atual das coisas, mesmo que muitos acusem a UNITA de oportunismo e de ter feito apenas proselitismo com as agruras cabindesas.
Enfim, a situação parece longe de um desfecho, seja ele a incorporação efetiva de Cabinda, a autonomia dentro de um Estado angolano ou a independência.
Brasão de Cabinda pela FLEC
Uma curiosidade: ao buscar no Google por “Petrobrás e Cabinda”, descobri que a prefeitura de Macaé e o Governo de Cabinda, em 2005, assinaram acordos de intercâmbio comercial, cultural e técnico. A justificativa era a semelhança entre as duas regiões, ricas em petróleo e com desenvolvimento criado por grandes petroleiras (Petrobrás e Chevron). Curioso desentendimento, pois as petroleiras em Cabinda estão separadas apartheidicamente da população.
Os rendimentos não ficam em Cabinda. As brigas do governador do Rio para manter determinadas taxas de impostos no Pré-sal parecem brincadeira de criança perto do que acontece no Enclave.
Sobre a exploração de petróleo em Angola, confira este mapa
(A Petrobrás não explora a área de Cabinda. A partir de 2006 tem explorado petróleo nas bacias de Benguela e do Kwanza.)

Fonte: http://igorreno.wordpress.com/

Enviada pelo prof. Helion Póvoa Neto.

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