quinta-feira, 15 de julho de 2010

Des-nacionais

(Texto e Fotos: Sindia Santos) | Também publicado em Global BR

A mulher negra agachada ao lado da mesa improvisada com caixotes plásticos estendeu a mão oferecendo um pedaço de Kuanga. A massa de mandioca, dizia Mama Bia, era um prato congolês muito parecido com o angu mineiro. Durante a semana, a massa seria misturada ao feijão, temperado com azeite de palma (similar ao óleo de dendê), cebola e alho, e fortalecida com folhas de mandioca. Ou então, misturada ao peixe, transformando- se num forte pirão.

– Hoje estou fazendo uma quantidade maior porque vendi para um casal de congoleses.

Desde as cinco da madrugada, Mama Bia se punha a amassar e enrolar em cilindros a mandioca que fora cozida, posta para secar, esfarelada e misturada a água quente. Suas costas se contraíam no esforço repetido.

– Prova, é boa.

Ela pousava um pedaço da massa sobre os lábios para mostrar que o gosto era bom. Em seguida recolhia da testa os fios de cabelo em desalinho, que escapavam da blusa laranja enrolada na cabeça. As feições rígidas do rosto tornavam impossível saber se a oferta para experimentar o prato era um pedido ou uma ordem.

Mama Bia seguia empilhando os cilindros na gaveta do freezer quando Kembo bateu a sua porta:

– Mama Bia, vai ter culto hoje?

Um domingo a cada quinze dias, Mama Bia recebe moradores das redondezas que se juntam àqueles da casa para realizarem o culto cristão-africano da Igreja Kinbanguista. Ela responde que sim com a cabeça e apressada se põe a ajeitar o pátio na entrada da casa, onde o culto seria realizado.

A casa é um sobrado com oito quartos, em cada quarto uma família. Mama Bia é a moradora mais antiga. Kembo chegara fazia cinco meses da República Democrática do Congo e aguardava a resposta ao pedido de refúgio. Mama Bia deixara a Angola há oito anos, veio para o Brasil atrás do marido que morava aqui há quatro.

No pátio, caixas de uma velha bateria são enfileiradas próximas às cadeiras ajeitadas lado a lado. À frente, uma mesa coberta com lençol branco improvisava um púlpito. Sobre ela, uma imagem dos três filhos de Simon Kinbangu, profeta que levou o cristianismo para a República Democrática do Congo, é pendurado na parede.

A manhã segue no vai-e-vem de mulheres a ajeitar seus quartos. Algumas lavam louça, outras roupa. O tanque coletivo que fica no fundo do quintal vira pia de cozinha e as roupas são lavadas em baldes, onde as peças são mergulhadas, postas de molho e esfregadas.

Beni, de seis anos, cruza o corredor, enrolada numa toalha branca, os cabelos protegidos por uma touca. Sua mãe, Patrícia, segue atrás com um balde cheio de água. O banho de Beni acontece ali mesmo, ao lado das mulheres que lavam roupa. Patrícia ensaboa o corpo de Beni com um pedaço de pano, dando atenção para os pés. Depois com uma jarra plástica, enxágua a menina. Logo, o corredor é tomado pelo cheiro de sabonete.

Kembo toma um analgésico. Sente-se muito doente, passara as últimas noites com febre e agora era acometido por uma dor de barriga que nas semanas seguintes desencadeariam hemorróidas. Ele se preparava para voltar ao quarto quando Sandra, que também mora na casa há poucos meses, passa de camisola em direção ao banheiro. Seu andar ondulante carrega o peso de quase quatro meses de gravidez. Sandra, o marido e o filho William dividem o quarto com Patrícia e sua filha Beni.

– Mulher tem que ter filhos, diz Kembo.

Aos 40 anos, Kembo não tem filhos, sua vida está assentada em projetos futuros: aguardar a concessão do refúgio, procurar um trabalho, fazer um curso de informática, outro de português, e então procurar um trabalho melhor; tudo longe de seus familiares, de seu país.

– Ficar sem filhos não é bom para mim. Meu pai me nasceu, também tenho que nascer filhos.

Kembo vai até a entrada da casa e abre a porta. Do andar de cima chega a voz de mulher numa música que parece uma lamentação. A espera para que as coisas se ajeitem no Brasil pode ser longa e Kembo sabe disso. Para cada estrangeiro que consegue reconhecimento como refugiado, outros dois têm o pedido negado. Atualmente, há 15,2 milhões de refugiados pelo mundo, quatro mil no Brasil. Dali a três semanas Kembo seria um deles.

– Não pisa no chão! Calça os chinelos e depois vai procurar a tua mãe.

Kembo chama a atenção do menino William. A criança volta para o quarto ainda chorando, acabara de acordar e reclamava a ausência da mãe que logo foi lhe socorrer.

Mama Bia finaliza a arrumação, varre com força escadas e calçada como que para mandar embora algo além da sujeira. Logo vai se arrumar, é a única que possui banheiro dentro do quarto. Os 16 moradores restantes usam dois banheiros coletivos, um no andar de cima e outro no quintal.

Enquanto Mama Bia veste uma espécie de bata com tecido africano de cor laranja e amarelo por cima da blusa preta, sua filha, Vânia, acorda. A menina de sete anos dormia numa cama de casal que ocupava metade do quarto. Na outra metade pia, fogão, geladeira e freezer se aglomeram.

– Moro nessa casa por necessidade. O Rio de Janeiro é bom para quem tem dinheiro. Do contrário, como se vive?

Mama Bia enrola um tecido roxo na cabeça, ajeita o cabelo, passa creme nas mãos, veste uma calça jeans.

– Consegui refúgio um ano após ter pedido. Desde então, já trabalhei com faxina, de babá, ajudante de limpeza, mas o salário era tão baixo que vender senglas nas ruas era melhor. Senglas em congolês, aqui se chama “sacolé”.

Aos poucos ela abre espaço entre panelas, utensílios domésticos e alimentos, organizando- os embaixo de mesas e sobre a geladeira. Na televisão sobre a cômoda, o Pica-Pau ri . Vânia se levanta e prepara o próprio achocolatado no chão, onde antes a mãe batia e enrolava a massa.

– No carnaval vendo muito senglas. Por isso comprei esse congelador. Passo a noite preparando os sucos e pondo-os no freezer, no dia seguinte ponho no isopor e vou vender aqui no sambódromo.

Lá fora, as mulheres seguem lavando o corredor onde a pintura se desprende em escamas e deixa à mostra a parede velha e mal cuidada. Mama Bia detém o olhar nas tubulações improvisadas.

– Nasci no Congo, me mudei para a Angola quando casei, meu marido era de lá. Tenho outra filha, Niquia, de 17 anos, que ficou com minha mãe, faz muito tempo. Foi no Congo que aprendi a fazer Kuanga.

Kuanga, a massa de mandioca, tem um gosto azedo, e na medida que se espalha na língua, o azedo fica mais denso.

– A gente não faz como aqui, não botamos sal em comida porque é o tempero que deve sobressair.

No início, o Brasil foi difícil. O modo de vestir de Mama Bia, com panos coloridos amarrados ao corpo, e de arrumar os cabelos, armando-os com linhas igualmente coloridas, logo chamaram a atenção.

– Fui na Central do Brasil pegar o trem e me perguntaram se era carnaval.

Muito a contra-gosto, passou a usar jeans e prender os cabelos, já então alisados, com grampos e elásticos. Ao mesmo tempo, vendia Kuanga para os vizinhos, e lhes ensinava seus penteados.

– Ainda visto minhas roupas e faço meus penteados, mas só em dias especiais.

Nenê, que mora num dos quartos do andar de cima desce as escadas segurando uma bacia de ferro. Dentro, um peixe enrolado no jornal, ainda com escamas. Esse vai ser o almoço de Kembo.

Desde que ela veio morar na casa, há três meses, Kembo lhe paga para ser incluído nas refeições. Nenê vive com dois filhos, um deles recém-nascido. Há poucos meses no Brasil, ela só fala em lingala, um dos dialetos falados no Congo, seu país de origem.

– Ela quer saber se essa reportagem não vai prejudicar as pessoas que moram na casa, explica Kembo. Ele diz que não, mas Nenê permanece inflexível e sobe as escadas dando a conversa por encerrada. Nas próximas semanas, não receberá mais Kembo para as refeições.

Mama Bia acompanha a cena de longe. Os outros moradores que também presenciaram o desentendimento se voltam em expectativa para ela. Sendo a mulher que mora há mais tempo na casa e uma das mais velhas em idade, nada ali dentro acontece sem que lhe peçam autorização.

– Deixa a Nenê para lá, sua irritação deve ter motivo.

Os moradores da casa compreendem que Nenê tenta se preservar. O território onde vivem agora é um pedaço de seu país no Brasil, ali podem falar em lingala, comer Kuanga, vestir roupas coloridas sem que nenhum olhar invoque estranhamento.

Mama Bia, Kembo, Sandra, Patrícia, Nenê, estão entre os 42 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar suas casas e migrar para outras cidades, ou pedir refúgio para outros países. Eles já não podem ser chamados de angolanos ou congoleses, e muito menos de brasileiros. Possuem uma “des-nacionalidade” que passeia entre as duas coisas.

Sindia Santos é colaboradora de Outras Palavras e Biblioteca Diplô. Jornalista, pós-graduada em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário), adora narrativas e é movida por um imenso encantamento pelo ser humano e tudo o que ele é capaz de criar. Atualmente mora no Rio de Janeiro.

Enviado por Regina Petrus. NIEM/IPPUR/UFRJ

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