terça-feira, 28 de dezembro de 2010

República Democrática do Congo: a "maldição" de ser rico

A “maldição” de ser rico

O país segue sofrendo as consequências de um conflito que, em grande medida, nasceu e se alimenta do interesse que suas riquezas despertam em empresas e nações estrangeiras

28/12/2010

Janaina Stronzake e Iker Zirion

Hoje em dia, e de acordo com a versão que nos é imposta sobre o que é a África, pode parecer ela se acabou, que se trata de um continente pobre e doente, com milhões de refugiados, homens armados sobre jipes, mulheres carregando seus filhos nas costas.

Contudo, a realidade não é assim. Muito pelo contrário: a África é rica. A África é verde. A África é, hoje, muito atrativa para interesses capitalistas, tanto de estados ocidentais como das empresas transnacionais.

Um exemplo é o que ocorre na República Democrática do Congo (RDC, também conhecida como Congo-Kinshasa), em cujo território há grande quantidade de recursos naturais – a segunda maior floresta tropical do mundo, depois da Amazônica – e minerais – diamante, ouro, cobre, nióbio, coltan etc.

Localizada no centro do continente africano e com um tamanho quase igual aos estados de Amazonas e Pará juntos, a RDC segue sofrendo as consequências de um conflito que, em grande medida, nasceu e se alimenta do interesse que suas riquezas despertam em países e empresas estrangeiras.

Contexto sociopolítico

A RDC é uma república cujo atual presidente, Joseph Kabila, foi eleito em 2006, em eleições consideradas democráticas por observadores internacionais. Todavia, as acusações de corrupção, repressão de opositores/as e violação de direitos humanos por parte de diferentes instâncias do Estado têm sido recorrentes em uma estrutura administrativa que, por outro lado, tampouco pode satisfazer os serviços básicos da população.

A saúde e a educação, especialmente, dentro de um claro processo de privatização, são, desde há anos, excessivamente caras e, portanto, de difícil acesso para grande parte da população.

Por outro lado, a falta de acesso à água potável, as infraestruturas precárias e, especialmente, a insegurança generalizada – mais grave na parte leste – permitem que a RDC, apesar de suas imensas riquezas, se encontre, em 2010, na posição 168 no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) anualmente elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Entre 1998 e 2003, a RDC sofreu com uma das guerras mais mortais do século 20, na qual perderam a vida mais de cinco milhões de pessoas. Ainda que a paz tenha sido assinada em 2003, os conflitos matavam cerca de 45 mil pessoas a cada mês até 2008 – ano até quando se têm dados.

O problema da terra

Aproximadamente 80% da população da RDC vivem do que produz no campo, e sua vulnerabilidade é elevada porque o campesinato se vê submetido a contínuas pressões. Por um lado, em determinadas zonas do país, especialmente no leste, a pressão demográfica sobre a terra é enorme. Em um processo relativamente recente, grandes extensões de terra permanecem sem ser cultivadas, nas mãos de grandes comerciantes, enquanto a maioria da população mal tem terra para plantar para comer.

Por outro lado, a Lei Agrícola (Code Agricole) que está sendo debatida neste momento pelo Parlamento congolês prioriza o latifúndio, a produção intensiva e para exportação, desconsiderando as necessidades ou a defesa dos direitos das campesinas e campesinos.

Um exemplo desse tipo de política vincula diretamente o país centro-africano com Brasil. O Ministério de Agricultura da RDC assinou, em 2008, um convênio com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

A então ministra de Comércio e Consumo do Congo-Kinshasa, Jeanne Dambedzet, expressou sua esperança de que o aumento da produção de cana-de-açúcar e dendê seria estratégico para seu país. No entanto, se tomamos em conta que a produção de cana tem um papel estratégico muito mais importante para a produção de etanol do que para a de alimentos, esse tipo de acordo pode ser um problema a mais para o povo congolês.

Minérios

O leste da RDC armazena em seu solo e subsolo uma considerável quantidade de matérias-primas: ouro, diamante, madeira, cobre e, sobretudo, coltan, um material supercondutor muito utilizado nos aparelhos eletrônicos – telefones celulares, iPod, mp3, computadores portáteis, playstations etc. Calcula-se que nessa região se encontra 80% das reservas mundiais desse mineral estratégico.

Sem nenhuma dúvida, a incidência dos recursos naturais e minerais no conflito é evidente, ao contrário da usual explicação étnica que agrada aos grandes meios de comunicação.

Ainda que durante a época em que o ditador Mobutu presidia o país (1965-1997) havia enfrentamentos e conflitos, a pior parte se inicia a partir de 1996, quando uma aliança de grupos armados nacionais, apoiados por países vizinhos, enfrentou o governo e chegou ao poder um ano depois. Posteriormente, entre 1998 e 2003, teve lugar uma guerra na qual participaram, além de muitos grupos armados congoleses, vários estados vizinhos, como Ruanda, Burundi, Uganda, Angola e República Centro-Africana.

Essa guerra tem o triste recorde de ser o conflito armado mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial: o número de vítimas diretas ou indiretas, desde 1998, é superior a cinco milhões de pessoas. Mesmo que a paz tenha sido assinada em 2003, a violência e a instabilidade permanecem até hoje, com muitos grupos armados ativos no leste do país.

No âmbito local, os diferentes atores armados encontram nos recursos naturais uma subvenção permanente para suas atividades e sempre tentaram se legitimar amparado em diferenças étnicas que são no mínimo discutíveis.

Intervenções

Em nível regional, os países vizinhos intervieram durante muitos anos na RDC. E continuam intervindo hoje. Especialmente alguns grupos de Uganda e Ruanda se enriqueceram muito com a exploração ilegal das riquezas do leste do Congo-Kinshasa, e não duvidaram em apoiar diferentes grupos armados em seu território.

Ainda hoje, parece que a maioria do tráfico ilegal de matérias-primas congolesas que chegam ao mercado internacional se realiza através de Ruanda. Curiosamente, e apesar de não existir coltan no território ruandês, este país é um dos principais exportadores mundiais do minério.

Finalmente, todas as matérias-primas que saem da RDC se dirigem ilegalmente, através dos mercados internacionais, a nossas casas. O papel de certos estados e, sobretudo, certas empresas transnacionais no conflito e na exploração das matérias-primas congoleses é tão evidente que foi denunciado repetidamente por informes da ONU.

Entre os países com maiores interesses econômicos e geoestratégicos na zona, estão a Bélgica (a antiga metrópole colonialista), França (que interveio na região repetidas vezes), e EUA e Inglaterra, que são, atualmente, os principais apoiadores do regime ruandês. Quanto às empresas estrangeiras e transnacionais, as de telecomunicações e de exploração mineira, por exemplo, obtêm grandes lucros com a atual insegurança.

Enquanto isso, nós, cidadãs e cidadãos a pé, entramos no jogo, trocando de celular a cada poucos meses, sem nos perguntar de onde estão vindo as matérias-primas para sua fabricação.

Janaina Stronzake é historiadora e integrante do MST; Iker Zirion é pesquisador e professor da Universidad del País Vasco. Morou na Republica Democratica do Congo em 2008.

Fonte: Brasil de Fato

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